VER PASSAR - Crônica desta terça-feira no jornal Hoje em Dia
O teatro da rua é constante, mutante. Personagens e performances se
alternam. Delicioso sentar-se em frente de casa, numa mesa de bar na
calçada, “ver o movimento”. Esquecer a vida,
vendo-a se mover nos outros – na diversidade da fauna humana. Alguns
espécimes interessantíssimos, exóticos, acesos; a maioria, comuns,
triviais, apagados.
Passar e ver passar definem situações
opostas. Quem passa não sabe que o assistem, não vê quem o vê. É objeto
vulnerável, presa indefesa da mira do outro. O que vê passar aponta e
dispara o tiro da crítica.
O repertório de exibições da rua traz bandas, blocos, paradas, passeatas...
A memória sofre à lembrança do dia de “ver passar” o presidente. Duas,
três, horas penando no cordão de isolamento. Uniformes impecáveis,
penteadíssimos – bonecos de massinha derretendo sob o sol de Vitória.
Bandeirinhas do Brasil, de início, espertas, vivas; ao final, cacos
verde-amarelos boiando no mar de garotos, mortos de cansaço – pequenas
vítimas do patriotismo. Batedores à vista! “É ele, gente! As
bandeirinhas! Acenem, acenem! Vai passar”! Passou... No caderno de
recordações Juscelino é sede insuportável, fogo subindo dos sapatos
Vulcabrás.
No caminho do Banco, um elefante. O office-boy,
fascinado, vê passar o circo – cavalos brancos, alegorias, artistas do
picadeiro, o leão, o tigre na jaula, macacos... três da tarde, em pleno
Centro, a fantasia o captura. Seduzido, divide-se ali mesmo: o “office”
com sua pasta de papéis se instala no chão; o “boy” segue o sonho, vai
embora com o circo.
Paradas militares fascinam pela cadência,
pela ordem. Nos desfiles, armas, máquinas mortíferas se tornam
inofensivos objetos da estética bélica. Multidões se postam pra ver
passar o poder de fogo das potências – vernissage das guerras. A morte –
ninguém foi ali para vê-la, mas está presente como destaque em sua
alegoria sinistra e invisível.
Dos espetáculos da rua, um se
nota pela extrema delicadeza – noturno, pacífico, saudável,
absolutamente silencioso. Dezenas de enormes formigas cabeçudas e
velozes. Estar no seu caminho é sinal de sorte – crendice
contemporânea. Fique atento! O bando surge do nada – magrelas, espertas,
olhos acesos e alma humana. Bicicletas – bom vê-las passar! Melhor
ainda... passar com elas.