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quinta-feira, 18 de julho de 2019

João Ubaldo

Luis Fernando Verissimo : "João Ubaldo era o mais delicioso dos escritores brasileiros"

Um laço entre Canudos e a Grécia clássica


Não são muitos os escritores que antes dos 30 anos alcançam produzir uma obra-prima e serem reconhecidos como grandes. João Ubaldo é um deles: nascido em 41, exatos trinta anos depois publicou Sargento Getúlio, um romance breve e marcante que está no repertório definitivo dos grandes feitos da literatura em português.

Quase se pode dizer que o resto de sua obra faz papel coadjuvente - e são alguns outros romances, entre os quais despontam um sucesso de público, Viva o povo brasileiro(1984), e uma novela de escândalo calculado, A casa dos budas ditosos (1999), além de crônicas de ampla leitura. A força principal dessa obra "auxiliar" vem de um sentido claro de irreverência, de deboche, de sátira a valores que, bem pensadas as coisas, terão pouca relevância para as novas gerações: para João Ubaldo, os inimigos mentais são a moral católica, a história oficial, a arrogância das elites, e os aliados pertencem a uma permanente crença na força desmistificadora do povo simples.

O caso é que Sargento Getúlio renova a força de uma excelente tradição brasileira (não só - na verdade, é característica de países e regiões periféricas à Europa Ocidental) - a tradição do romance testemunhal, narrado em primeira pessoa, que dá a palavra para um homem oriundo das camadas mais pobres e iletradas que entra em contato com o mundo do poder, armando para isso uma forma capaz de representar a linguagem e a visão de mundo de alguém cuja vida medeia entre dois mundos (sociais, políticos, intelectuais) opostos.

Antes dele, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa despontam nessa família, a que podemos acrescentar o contista Simões Lopes Neto: Paulo Honório, Riobaldo e Blau Nunes antecedem Getúlio nessa condição. Esse sargento relata sua experiência definitiva - foi encarregado, por um chefe político da capital do sergipe, de conduzir um preso político de uma cidadezinha interiorana até Aracaju. Capanga à moda tradicional, Getúlio já matara mais de vinte, e agora executava essa nova tarefa.

Só que, no meio do percurso, ocorre algo que para ele é incompreensível: seu chefe vem a perder o poder, e o preso conduzido por Getúlio passa a ser alguém da situação. Mandam recado ao sargento para que libere o preso, mas Getúlio se nega, porque, afinal, palavra é palavra - a palavra dada, para um sertanejo como ele, vale mais que qualquer coisa, qualquer arranjo político. Mandam que ele liberte o sujeito e suma dali, e neste momento temos um dos momentos sublimes do romance, porque Getúlio não sabe, não concebe o sentido de fugir a uma missão assumida. "Como eu posso sumir, se eu sou eu?", ele se pergunta, num atestado ao mesmo tempo de honra e de anacronismo.

João Ubaldo é talvez o terceiro de sua geração a morrer: primeiro foram Caio Fernando Abreu e Moacyr Scliar. Todos eles cosmopolitas, praticantes da narrativa e forjados no mau tempo da ditadura militar e da revolução de costumes que veio com a pílula anticoncepcional e o rock'n'roll, o que imprimiu a seu horizonte uma marca de certa militância, ao mesmo tempo que obrigou à experimentação - todos eles se viram obrigados a arguir a forma, porque todos sabiam que já havia a sombra de grandes, como Guimarães Rosa ou Clarice Lispector.

Curiosamente, foi também um pensador nascido no Rio Grande do Sul quem propôs, no calor da hora da primeira metade dos anos 70, a mais significativa interpretação para a história de Getúlio: foi José Hildebrando Dacanal quem, em um estudo já clássico, A nova narrativa épica no Brasil (1973), apresentou uma hipótese ainda agora original - o Sargento Getúlio, ao lado de Grande sertão: veredas, de A pedra do reino(Ariano Suassuna), O coronel e o lobisomem (José Cândido de Carvalho) e Chapadão do bugre (Mário Palmério), seria o enunciado literário da transição entre uma visão de mundo mítica, marcada pela origem sertaneja, e a visão de mundo racional e crítica, característica do mundo moderno e urbano. Tais livros seriam o lado brasileiro de uma equação que alcança gente como Gabriel García Márquez, Juan Rulfo e outros hispano-americanos.

Em Sargento Getúlio há duas frases de abertura, como uma epígrafe de esclarecimento. A primeira informa: "Nesta história, o Sargento Getúlio leva um preso de Paulo Afonso a Barra dos Coqueiros". A segunda comenta, dando perspectiva ampla para o texto: "É uma história de aretê".

Aretê é conceito grego clássico, que descreve a virtude do sujeito que realiza sua essência, que alcança a excelência, como é o caso do herói épico. Assim se pode dizer que se passa com Getúlio? Sim, ele realiza talvez seu melhor, que porém é algo que o leva à morte, o que significa que a ele se poderia associar o conceito grego de certa forma oposto a aretê, a húbris, o descomedimento, a perda do sentido das proporções e das regras, algo que se associa não ao épico mas ao trágico.

Deste tamanho é a obra de João Ubaldo Ribeiro: ela leva o mundo sertanejo, a que não falta nem mesmo a menção à exterminada Canudos, no cap. V, até as alturas da grande tradição ocidental, à profundeza dos pilares da civilização ocidental, com a argamassa da vida forte e dura dos confins da América brasileira.
*Professor, pesquisador e escritor

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